Depois de anos de carreira no Ministério Público, uma coisa que sempre me chamou a atenção foi como a rotina exige tanto do trabalho repetitivo quanto do raciocínio estratégico. Durante esse tempo, testemunhei a evolução da tecnologia que começou a transformar o trabalho nos Ministérios Públicos. Hoje, estamos em um ponto onde a inteligência artificial (IA) já faz parte do nosso dia a dia. A questão é: como podemos aproveitar essa oportunidade para melhorar o impacto do trabalho dos Ministérios Públicos?
A importância dos dados no Ministério Público
O Ministério Público é uma das instituições mais ricas em dados do Brasil, com acesso a informações, desde investigações até análises socioeconômicas detalhadas. Mas ter acesso a dados não é o suficiente. É preciso organizá-los e usá-los de maneira eficaz e ética. A operação Lava Jato foi um exemplo claro de como dados aparentemente desconexos, quando combinados, podem ser cruciais para a resolução de casos.
A eficácia da IA está diretamente ligada à qualidade dos dados disponíveis. Portanto, a curadoria, o tratamento e a organização desses dados são fundamentais para que a IA possa operar de maneira eficiente e produzir resultados confiáveis. Quanto melhores os dados, melhores os resultados.
A jornada da transformação digital no Ministério Público
Costumo dividir a transformação digital no Ministério Público em três grandes Eras. A primeira foi marcada pelos processos físicos — pilhas de documentos e processos sendo transportados em carrinhos e organizados em escaninhos. A segunda começou com a chegada dos sistemas eletrônicos, como o Processo Judicial Eletrônico (PJE), que deu início à digitalização e os Ministérios Públicos precisaram adaptar seus fluxos de trabalho. Esse foi um avanço, mas o verdadeiro impacto veio com a terceira Era, a digitalização completa dos processos, incluindo os extrajudiciais, que transformou nossa forma de trabalhar.
Agora, estamos na quarta Era da transformação digital, onde lidamos com volumes imensos de dados e o grande desafio é transformar essas informações em ações estratégicas que realmente façam a diferença. É nesse cenário que as ferramentas de Data & Analytics (DA) e IA entram. Precisamos entender como usar esses dados, transformando-os em insights que nos permitam agir de maneira mais eficiente e justa, garantindo uma atuação mais proativa e impactante na defesa dos direitos e no combate às irregularidades.
IA aplicada no Ministério Público
A IA já está sendo aplicada de diversas formas no Ministério Público, desde a geração de resumos automáticos de processos até a análise preditiva de tendências criminais. Essas aplicações têm o potencial de revolucionar a forma como trabalhamos, permitindo-nos ser mais eficientes e eficazes em nossa missão de promover a justiça.
Análise de processos, sumarização e geração de documentos
Um exemplo concreto da aplicação da IA em nosso campo é a geração de resumos automáticos de processos. Esta tecnologia já está em funcionamento no Ministério Público de Mato Grosso, permitindo a análise rápida e eficiente de inquéritos policiais extensos, identificando pontos críticos com precisão. Não é só um atalho; é uma ferramenta para garantir que questões urgentes, como a proteção de uma criança em risco, sejam tratadas com prioridade.
A IA também pode agilizar a criação de documentos. No Mato Grosso do Sul, por exemplo, foi implementada uma ferramenta que gera denúncias em 17 segundos. Isso é impressionante, mas não se trata apenas de velocidade. O verdadeiro valor está em liberar tempo para que o promotor se concentre no que realmente importa: a análise e a tomada de decisões estratégicas.
Assistentes virtuais
A implementação de assistentes virtuais no Ministério Público é outra aplicação promissora. Um exemplo concreto foi observado em um tribunal do júri no Mato Grosso, onde um promotor utilizou um assistente virtual para acessar informações críticas do processo em tempo real, melhorando a qualidade e a rapidez de suas intervenções durante a sessão.
Essa automação pode ser um divisor de águas. Com o volume de processos que são tratados diariamente, ter acesso imediato a informações essenciais é uma vantagem enorme. E isso não só acelera o trabalho, como também o torna mais preciso.
Personalização e aprendizagem contínua
Outro ponto importante é a personalização desses assistentes virtuais. Cada promotor tem seu próprio estilo de escrita e argumentação. Portanto, é fundamental desenvolver assistentes capazes de se adaptar às particularidades de cada profissional.
Esta personalização é essencial para garantir que as ferramentas de IA sejam verdadeiramente eficazes e bem aceitas pelos profissionais.
Visão proativa na prevenção de problemas
A verdadeira revolução proporcionada pela IA reside em sua capacidade de não apenas reagir, mas antecipar problemas. Com o uso adequado da IA, podemos passar de uma postura reativa para uma abordagem proativa. Imagine, por exemplo, uma licitação pública com indícios de irregularidade. A IA pode nos alertar sobre esses sinais nos estágios iniciais, antes mesmo que o contrato seja assinado ou que qualquer pagamento seja efetuado.
Um Ministério Público mais eficiente e justo com IA
Estamos vivendo um momento único para a aplicação da tecnologia no Ministério Público. Embora estejamos apenas começando a explorar o vasto potencial da IA, já podemos observar resultados práticos significativos.
Para maximizar os benefícios da IA, é fundamental que sua implementação seja estratégica e integrada, evitando abordagens isoladas. Além disso, é necessário considerar o impacto social dessas tecnologias. O uso adequado da IA no Ministério Público tem o potencial de melhorar o acesso à justiça para a população em geral, reduzindo a morosidade do sistema judicial e permitindo uma atuação mais eficaz e equitativa.
À medida que avançamos nessa jornada de transformação digital, devemos manter o foco não apenas na eficiência operacional, mas também no impacto positivo que essas tecnologias podem ter na sociedade como um todo. O futuro do trabalho no Ministério Público com o uso de IA não é apenas sobre fazer mais com menos, mas sobre fazer melhor para todos.
Renato Paquer é formado em Ciência da Computação, com especialidade em Governança de TI e Arquitetura de Software, Cybersecurity e Data Science pela PUC-PR. Com 17 anos de experiência no setor da justiça, onde atuou em diversos projetos de transformação digital e inovação. Em sua carreira atuou também com liderança de equipes ágeis, gerenciamento de projetos, gestão e governança em tecnologia da informação. Está na Softplan como Head da vertical de Ministérios Públicos.